Ar Livre!


Ar livre, que não respiro!
Ou são pela asfixia?!
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!

………………………


Ar livre!
Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Ar livre, como se tem
Fora do ventre da mãe,
Desligado do cordão!

Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas,
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!



Miguel Torga, Cântico do Homem


RECUSA

Convosco, não, traidores!
Que poeta decente poderia
Acompanhar-vos um segundo apenas?
À quente romaria do futuro
Não vão homens obesos e cansados.

Vão rapazes alegres,
Moças bonitas,
Trovadores,
E também os eternos desgraçados,
Revoltados
E sonhadores.

Miguel Torga, Cântico do Homem
S. O. S.

Vai ao fundo o navio,
Mas eu sou o homem da telegrafia,
O que lança nas asas do vazio
O adeus da agonia...

Sei que ninguém acode à íntima certeza
De que tudo acabou quando naufraga
O veleiro do sonho.
Mas honrado poeta sinaleiro
Do destino de quantos aqui vão,
Ponho
A correr mundo o grito derradeiro
Da nossa desgraçada perdição.

Miguel Torga, Cântico do Homem


Ode ao Honorabilíssimo Sir William Temple




Essas astúcias que sustêm o Estado
passes de prestidigitação
Que chamamos profundos desígnios políticos
(Como no teatro, o néscio parolo,
Não se apercebendo das cordas,
Pasma ante uma auréola que voa)...

Mas suponhamos que em plena representação
A máquina, mal montada, se desconjunta,
Os cenários entreabrem-se e tudo deixam ver:
Logo o truque entra pelos olhos dentro!
Como é simples! Que grosseira trapaça
Vede pois o nó da polé!...
Que pobre máquina acciona
Os pensamentos dos monarcas e os planos
De que misérias depende a sua Sorte!...
Apavorados os campónios fogem,
Tremendo ante o Prodígio inaudito...
Ei-lo! Olhai!
Como todos se arrepiam e tremem!

Jonathan Swift,"Ode ao Honorabilíssimo Sir William Temple" (1689)

"Afastada a justiça,
o que são os reinos senão grandes bandos de ladrões?
E os bandos de ladrões o que são, senão pequenos reinos?" .

Santo Agostinho, A cidade de Deus, finais do séc. IV d.C.


É uma coisa estranha este verão

E no entanto ia jurar que estive aqui

Não me dói nada, não. A tia como está?

Claro que vale a pena, por que não?

Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu

Podem contar comigo, eu tenho uma doutrina

Não é bonito o mar, as ondas, tudo isto?

Até já soube formas de o dizer de outra maneira

Há coisas importantes, umas mais que as outras

Basta limpar os pés alheios à entrada e só mandarmos nós neste templo de nada

E o orgulho é a nossa verdadeira casa

Nesta altura do ano

quando o vento sopra sobre os nossos dias, sabes quem gostava de ser?

Não, cargos ou honras, não.

Um simples gato ao sol, talvez uma maneira ou um sentido para as coisas

...

Ó dias encobertos de verão no meu país perdido …

...

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que importa, se o verão mesmo é uma certa estação?

Escolhe inscreve-te pertence, não concordas que há cores mais bonitas do que outras?

Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo

hão-de encontrar coerência em cada gesto meu…

Há fórmulas, bem sei, e é preciso respeitá-las

como o gato que cumpre o seu devido sol…

Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras

fixo, imóvel, dito para sempre, reduzido a um número.

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Acreditas no verão? Terás licença?

Diz-me: seria isto, nada mais que isto?
Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz, aí é o inferno e não achas saída

Precário, provisório é o teu nome…
Que fica dos teus passos dados e perdidos?

Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,o riso que resulta de seres vítima de olhares

Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?


Ruy Belo

A luta contra a tirania, reclamou-se de um humanismo libertador herdado dos ideais iluministas e revolucionários des enfant de la patrie que o Liberalismo que se lhe seguiu subverteu e espezinhou.
Hoje, regressamos alegremente ao séc XIX, século em que a guerra e a convulsão social, quantas vezes a guerra civil, eram tão frequentes quanto o operário não ter dinheiro para calçar os filhos ou o camponês não ter pão para lhes dar de comer.
Aparecerão com novas roupagens e adereços mas, por baixo, por detrás de todas as contingências derivadas da roda do tempo, está a mesma personagem fétida e gémea de si mesma que tem acompanhado a Humanidade desde o mais antigo dos tempos: a dor e o sofrimento.